Farei um breve resumo sobre o histórico do futebol feminino nesse texto, pois ele é extenso e profundo. Faço uso da escrita para explanar um pouco sobre os motivos de a sociedade em geral ainda apresentar preconceito e desinformação sobre a modalidade. As primeiras referências de partidas de futebol disputadas no Brasil entre mulheres surgiram nos anos 20. Em 1941, ocorreu a primeira proibição de vários esportes para mulheres, através de um processo de regulamentação do esporte no Brasil. Foi instituído um decreto-lei (3199, art. 54), dizendo que mulheres não deveriam praticar esportes que não fossem de sua natureza. Já no ano de 1965, houve uma proibição mais detalhada. Desta vez, a deliberação citou especificamente a modalidade de futebol feminino. Somente em 1979, foi revogada a lei de proibição, dando assim a possibilidade de um novo recomeço para as mulheres que quisessem praticar o desporto. Entretanto, somente em 1983 (eu tinha 2 anos na época) a modalidade foi regulamentada, possibilitando efetivamente a criação de calendários competitivos, a utilização de estádios e a possibilidade da inclusão da modalidade no âmbito escolar. Particularmente, esse último configura-se como o avanço mais relevante.
Foi por meio desta inclusão que tive meu primeiro contato com o futebol. No panorama internacional, a FIFA realizou em 1988, um mundial na China em caráter experimental, sendo este, o torneio que serviu de pontapé inicial para o desenvolvimento do futebol feminino a nível mundial. O Brasil ficou em terceiro colocado, tendo a participação de 12 seleções mundiais. Por fim, em 1991 (com 10 anos na época, acompanhei), foi o ano da 1ª Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino. Partindo desse breve histórico, podemos entender que a modalidade tem histórico muito recente, e que houve em sua trajetória muitas injustiças e entraves que dificultaram seu progresso. Além disso, por meio de imposições de leis decorrentes de pensamentos machistas e preconceituosos, resultaram na estagnação da modalidade por todos esses anos e que justificam os vários questionamentos de hoje acerca do por quê de sua não evolução.
O fato de ter sido uma modalidade proibida produziu, por gerações, o senso comum de esporte marginalizado e de até que faria mal à mulher que o praticasse. Pensamentos que foram carregados e alimentados como verdade, tornaram-se uma crença que se enraizou na cultura dos brasileiros, motivo esse que refletiu e reflete negativamente até hoje no subconsciente coletivo da sociedade, em geral. Recorrentemente me questionam se sofri algum tipo de discriminação e preconceito. Digo que sim e muito. A diferença é que antes me causava dor e hoje consigo entender claramente os motivos que levaram as pessoas a terem aqueles determinados tipos de comportamentos. Por ter passado por este tipo de experiência (excludente, preconceituosa e machista), sinto-me incumbida de me posicionar de maneira que os faça refletir minimamente sobre suas ações. Já fui reativa. Hoje, mais madura e na condição de educadora, consigo reagir de maneira mais consciente em minhas falas e em minhas atitudes.
Voltando mais ao tema exposto, vemos que no ano de 2020, a modalidade vive seu melhor momento, no que se refere à expansão, visibilidade e em maiores oportunidades da prática. Muito disso devido à medida de 2019, que obrigou os clubes da série-A do Campeonato Brasileiro a obterem uma equipe feminina adulta e uma de categoria de base. A medida faz parte do licenciamento de clubes da CBF, documento que regulamenta a temporada de competições profissionais de futebol do país e segue orientações da Conmebol. Essa medida fez com que houvesse uma corrida nunca vista por informações de como se gere uma equipe feminina e a busca por atletas da modalidade, oportunizando o retorno aos gramados de muitas atletas que já haviam “pendurado a chuteira” , com promessas de bons salários e estruturas melhores. Como a obrigatoriedade foi um pouco repentina e, tampouco a maioria dos clubes deram a devida importância e crédito à nova medida, a fim de se preparar, estes sofrem o reflexo de tal atraso. Dentre as maiores dificuldades para a implementação da equipe, uma delas é a falta de jogadoras para as competições de alto nível, movimento que fez repatriar algumas atletas brasileiras que jogavam no exterior e que não figuravam há tempos no contexto nacional.
Equipes como Santos e Corinthians não tiveram dificuldade alguma, pois já contavam com equipes femininas em seus departamentos. De acordo com o relatório produzido pela FIFA, o Brasil tem menos jogadoras de futebol do que países que estão bem abaixo do ranking da FIFA (Brasil atualmente está em 8º, mas em 2019 estava em 11º). Nosso País tem 15 mil mulheres praticando o futebol de alguma forma organizada. Entretanto, quando elucidamos esses números, 2.947 jogadoras são registradas e 477 das categorias de base. Para se ter um comparativo em termos mundiais, os países com mais atletas registradas em suas confederações são Estados Unidos (com inacreditáveis 1,6 milhões), Canadá, Inglaterra, Suécia, Noruega, Alemanha, Holanda e Austrália, com mais de 100 mil jogadoras registradas. O Brasil nesse momento inicia de fato seu processo de desenvolvimento mais contundente de toda a sua história no futebol feminino. Porém, como toda medida obrigatória, esta foi alvo de contrariedades, questionamentos de dirigentes e pessoas do meio do futebol.
Quando me perguntam o que penso, digo que tudo poderia ter ocorrido de maneira menos radical e arbitrária e que os clubes, dirigentes e que se outras pessoas envolvidas com este esporte tivessem se conscientizado anteriormente sobre a importância de haverem meninas praticando futebol, não precisariam de tal medida. Como percebi que isso não ocorreria a curto e médio prazo, acredito que tenha sido o melhor caminho. Por este motivo, sou a favor da obrigatoriedade. A interferência cultural que houve com medidas proibitivas realmente culminou em um retrocesso da modalidade, que consequentemente, resultou na retirada dos direitos das mulheres relativo a pratica do futebol, sendo assim, essa nova medida de obrigatoriedade seria nada mais, que uma forma de justiça e reparo aos danos causados para seu desenvolvimento. Acredito que se o futebol feminino fosse considerado anteriormente como um ótimo aliado na formação pessoal e fosse utilizado como uma ferramenta na inclusão social dentro das escolinhas de futebol e outros espaços educacionais, consequentemente teríamos um maior número de jogadoras praticantes atualmente.
Assim, os setores competitivos de atletas nos Clubes e Seleções apresentariam um quadro diferente do atual. Além disso, não estaríamos falando hoje sobre esta obrigatoriedade. Infelizmente vi muitas “Martas”, “Cristianes” e “Formigas” sendo levadas a interromper a prática do futebol por ignorância ou falta de condições. Porém, a partir de agora e felizmente, o Futebol Feminino terá novos desafios. Contudo, serão positivos, como os desafios do crescimento, da sua afirmação e consolidação e como a busca por estratégias que tornem esta modalidade rentável, atraente e autossuficiente. Com isso, que este, pelo seu exemplo histórico possa contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária. Tenho o prazer de ter feito parte dessa evolução como atleta por mais de 20 anos, e de poder continuar contribuindo agora como professora/técnica seja no âmbito técnico/tático ou como por meio das experiências que vivenciei. Ver a trajetória recente dessa modalidade passar diante dos meus olhos me faz sentir, mesmo depois de tantas lutas, uma privilegiada.
Não imaginaria nem em meus maiores anseios que vivenciaria este momento histórico da modalidade. Para mim, futebol nunca teve e nunca terá gênero.
Jéssica de Lima
Atleta de futebol por mais de 20 anos. Campeã Brasileira, Bicampeã Paulista. Técnica das categorias de base da equipe feminina de São José do Rio Preto – Auxiliar Técnica da SELEÇÃO BRASILEIRA SUB-20.