terra

Hugo Ramón Barbosa Oddone*

Quero iniciar esta fala com a ideia de que o maior problema da humanidade, já há algum tempo, é a ruptura da conexão com a Mãe-Terra (Pachamama, como a chamariam nossos irmãos peruanos e bolivianos). Há um processo lento, histórico, de destruição sistemática da natureza, cada vez mais sem volta.

Sempre me chamou a atenção, em qualquer loteamento, profissionais desalmados arrancando pela raiz toda e qualquer vegetação para apresentar o “terreno nu”, limpo, sem nenhum traço verde. As pessoas já estão tão acostumadas com isso e valorizam de forma clara e explícita esta forma de apresentarem para elas o “terreno(o seu chão), o futuro lar delas.

O processo de urbanização atraiu muita gente: a mão de obra barata das fazendas de gado e dos antigos laranjais da região, hoje canaviais, migrando para as cidades, ampliando-se cada vez mais em bairros populares e povoando de forma desordenada os cinturões de pobreza nas periferias em quase todas as cidades brasileiras. Apresenta-se assim uma espécie de pirâmide invertida, onde a base, claramente majoritária, e a mais povoada, permanece na periferia ou nos bolsões que conhecemos como favelas, com cultura própria (tentando preservar a cultura rural e criando, sem perceber, uma subcultura de sobrevivência), com seus valores e maneiras próprias de viver, também com esquemas de convívio quase perverso com as classes média e alta da cidade, já instaladas há mais tempo na mesma cidade e com as quais mantém relações de dependência e submissão, que se mostram estranhas. Todo mundo percebendo as imensas diferenças, mas como que fazendo de conta que não as notassem, como se, de fato, não existissem.

No isolamento do consultório, testemunhando as intimidades das pessoas que me consultam, deparo-me em menor ou maior grau com este fenômeno da desconexão com a própria natureza, com o desconhecimento ou evitação dos próprios sentimentos, daquilo que o próprio corpo ou a corporeidade expressam ou desejam expressar, na busca da autorregulação. Quanta energia gastam neste insano processo de autoengano, e quanto sofrimento decorre da frustração desse caminho de fuga de si mesmo, dessa profunda fobia de se olhar no próprio espelho, do reflexo do próprio desejo ou da descoberta da necessidade por baixo das aparências. Vidas limitadas, vidas urbanas, vidas condicionadas a uma modalidade urbana de se viver, com horários rigidamente determinados, do comercial, dos cinemas, da padaria, dos almoços fast-food, dos relógios de ponto, do farol vermelho que não pode ser ultrapassado, e assim infinitamente.

No Tai chi chuan, há uma posição de meditação que consiste em “abraçar a árvore”. Coisa de chinês. Mas é interessante “abraçar” uma árvore, no fim das contas, muitas vezes, essa ou aquela árvore pode ser o ser vivo mais velho que estamos contatando. Pois é, nessa inversão das coisas (valores), a perversidade chega a tal intensidade que muita gente, certamente desalmada, detesta árvore. E acha um esporte divertido cortá-las e esvaziar as ruas e os quintais de qualquer vegetação. Nem falemos da mata-atlântica ou da Amazônia (longe demais da gente, contatamos esta natureza à distância – via vídeo, como se fosse algo extraterreste).

Estamos no território daquilo que podemos chamar de Paradigma. Temos visões diferentes, cosmovisões diferentes. Nós, psicólogos que seguimos o paradigma fundamentado no holismo – aquele teorizado pelo Marechal Jan Smuts*, identificamo-nos com esta cosmovisão holística, com conceitos que revolucionaram as ciências do humano.

*[SMUTS, primeiro ministro sul-africano por duas vezes, até 1948 – quando perdeu as eleições, fato que acabou levando ao poder uma minoria branca que instalou no país o mais perverso Apartheid, somente desfeito com a libertação do herói libertador Mandela, que ficou preso por mais de 25 anos].

No dicionário do Google nos deparamos com os seguintes significados para o termo holismo:

abordagem, no campo das ciências humanas e naturais, que prioriza o entendimento integral dos fenômenos, em oposição ao procedimento analítico em que seus componentes são tomados isoladamente [Por ex., a abordagem sociológica que parte da sociedade global e não do indivíduo.].

Doutrina médica e escola psicológica que considera os fenômenos biológicos e psicológicos como totalidades irredutíveis a simples soma de suas partes.

Na filosofia da linguagem, teoria que considera o significado de um termo ou sentença unicamente compreensível se for considerado em sua relação com uma totalidade linguística maior, através da qual adquire sentido.

A Gestalt-terapia, criada por Fritz Perls, que viveu na África do Sul e conheceu Smuts, adotou o holismo como uma espécie de guarda-chuva, que aconchegava principalmente a fenomenologia, o foco no aqui-e-agora, a impossibilidade de compreender qualquer fato isolado do contexto em que ele se insere e outros aspectos de ordem circular que são próprias da abordagem. Hoje, podemos associar ao holismo uma visão ecológica da vida e a clara renuncia ao antropocentrismo que caracteriza, fortemente, todas as demais abordagens teóricas da Psicologia.

Segundo Spangenberg (2007), o paradigma é uma forma de ordenar e entender o mundo. Assim, ele se constitui basicamente enquanto cosmovisão, ao compartilhar como cultura um determinado período histórico, valores, crenças, formas de interpretar as ações humanas, enquanto indivíduo, famílias, grupos sociais, comunidades, etc Enquanto esse paradigma definir a nossa maneira de fazer a leitura da realidade, ela delimita as fronteiras do conhecimento, a religião, a saúde e a doença, a ética e também as concepções de índole metafísica, como o sentido da vida, a origem do homem, etc.

[…] O paradigma vigente – ainda que em franca retirada – na nossa época, continua sendo o chamado newtoniano-cartesiano, em homenagem a dois de seus mais importantes representantes: Newton e Descartes. Esses pensadores transformaram-se, por suas contribuições ao conhecimento ou às formas de obtê-lo, em pilares de uma concepção do mundo. Tal concepção que regeu o pensamento mecanicista e determinista da vida – e que, de alguma maneira, é a responsável pelo progressivo deterioro do espírito do homem em nosso tempo – deve-se mais à extração, embora descontextualizada, de algumas das contribuições desses homens, do que propriamente de uma intenção deles de impor tal ordem (SPANGENBERG, 2007).

Aglobalização – que nos dá uma perspectiva diferenciada de tudo que conseguimos imaginar, um fenômeno que vá acontecendo no nosso tempo(há menos de vinte anos), em todos os sistemas sociais e em todos os aspectos – vai dando espaço para um novo paradigma, e desta forma, a concepção mecanicista e determinista vai desaparecendo paulatinamente para dar lugar a uma outra forma de se lidar com a vida.

Esta condição proposta pela globalização, claramente baseada, ao meu ver, neste novo paradigma holístico, apresenta-se como algo inimaginável, algo tão romântico, um sonho irreal, algo completamente utópico, uma enteléquia. Lembra-me um pouco aquela canção do John Lennon, Imagine

Imagine – John Lennon (tradução Internet) Imagine que não existe paraíso É fácil se você tentar Nenhum inferno sob nós Acima de nós apenas o céu Imagine todas as pessoas Vivendo o presente Imagine que não há países Não é difícil Nada por que matar ou morrer E nenhuma religião também Imagine todas as pessoas Vivendo a vida em paz Você pode dizer que sou um sonhador Mas eu não sou o único Tenho esperança de que um dia você se unirá a nós E o mundo será um só Imagine que não existe propriedades Será que você consegue? Sem ganância ou fome Uma fraternidade do Homem Imagine todas as pessoas Compartilhando o mundo inteiro Você pode dizer que sou um sonhador Mas eu não sou o único Tenho esperança de que um dia você se unirá a nós E o mundo será um só

Entretanto, estamos vivendo, creio que sem perceber direito, exatamente essa situação descrita na canção. O que seria utopia, há uns poucos anos atrás, tornou-se uma realidade. Vivemos em plenitude a globalização. O que acontece na China sabemos na mesma hora, tudo nos influencia direta ou indiretamente. A velha visão mecanicista, onde o fator A interfere no fator B e este no C, já não funciona desse jeito. Tudo é tudo. Tudo é fator. Tudo é efeito. Vivemos no mundo da globalidade, num mundo circular. A globalização tomou conta de tudo, em todos os países, em todos os continentes, principalmente no mundo comunicacional entre as pessoas, empresas e instituições. 

Do ponto de vista psicológico é como se vivêssemos o sonho freudiano de viver num mundo transparente, sem defesas, onde já não existe mais inconsciente, onde tudo está à mão. Desejos recalcados nunca mais! Sexualidade e agressividade administrados à perfeição, poder e vulnerabilidades vivenciados com compaixão!

O aqui e agora não ocorre somente no metro quadrado onde me encontro. O aqui e agora pode se estender até onde consigo chegar através dos meios de comunicação. É um aqui e agora ampliado, que é possível que ainda me confunda, por não possuir as ferramentas necessárias,certas, para lidar com isto, mas também, com a posse delas, me enriqueço ampla e profundamente.

Mas, é claro que devemos reconhecer que as coisas não funcionam como Yoko Ono e John Lennon queriam que acontecessem. Imagine é uma música muito bonita. A letra é um hino de esperança deste desejo profundo humano de transformar a Terra, o planeta no habitat natural, de fato, da humanidade. O desejo de se viver em plenitude num mundo de solidariedade, de compaixão, num mundo fraterno.

Mas não é isso que vivemos neste mundo e nunca foi diferente – a história nos conta isso em ricos detalhes. O ser humano como o ser mais ganancioso, competitivo, vingativo: Caim matando Abel, Judas traindo Jesus por trinta moedas e por aí vai.

Precisamos diferenciar o que acontece na Natureza de uma forma geral em relação a como o ser humano age, e que quase sempre atua de uma forma bastante “inconsciente”, competitiva e, muitas vezes, “troca o pé pelas mãos”, “enfia o pé na jaca”.

Entretanto, a natureza na verdade não se guia pela regra da competição, na sobrevivência do mais forte, como nos faziam acreditar os que impuseram as conclusões darwinianas da superioridade branca, durante séculos, e que motivaram todas as guerras colonialistas e, principalmente, a segunda grande guerra mundial. A natureza se rege pelo princípio da interdependência, onde todos vivem em equilíbrio, partilhando o mesmo espaço, adaptando-se aos ciclos naturais. Nenhum animal mata por simples prazer, só e exclusivamente pela fome, motivo pelo qual se garante a sobrevivência de todas as espécies.

Na verdade, essa condição de globalização dos costumes, dos valores, das crenças, e outroscaraminguás, não fez com que a humanidade se tornasse mais evoluída do ponto de vista ético, principalmente porque continuamos paranoicamente a estranhar e dificultar a inclusão do estranho e diferente. Do ponto de vista político, continuamos a querer dominar o outro, persistimos em querer impor ao outro nossos mais simples desejos. E, antropologicamente, nossa fotografia melhor, agora mais do que nunca, sempre é a selfie, ou seja, o EU que se impõe ao NÓS. O antropocentrismo continua a se impor a qualquer outro Reino da Criação.

Nunca antes se viveu com tanta angústia perante as ações do Coronavírus, que fustigou sem nenhuma compaixão países e cidades, vitimando indiscriminadamente, velhos e jovens, homens e mulheres, ricos e pobres, principalmente pelo colapso dos sistemas de saúde, por não poder atender além da sua capacidade. A humanidade globalizada é atacada por uma praga globalizada.

E embora a OMS atue de forma a coordenar as ações de forma transnacional ou transcontinentalmente, governos, estados e prefeituras agem discordando política e economicamente, em função de interesses locais, ignorando o que global e sanitariamente parece ser mais indicado a todos. Assim, utilizando-se de meios e procedimentos historicamente superados, como se interessasse propositalmente um recrudescimento de velhas práticas de dominação de uns sobre outros, começam a aparecer aqui e ali, atitudes irracionais, como nacionalismos ultrapassados, capitalismos mais selvagens, inclusive algumas lideranças que propõem a volta de práticas como aquelas tão próprias de épocas obscurantistas, como propor a desaparição do Covid-19, utilizando novamente o velho expediente da “queima às bruxas”. Onde “bruxas” significa básica e tradicionalmente o desaparecimento das oposições. A obra maquiavélica, nesse sentido, nestes tempos de crise do Coronavírus e, em pleno século XXI, continua atual.

Esta crise que afeta o Planeta como um todo, não estava nos planos de ninguém, não foi causada por uma guerra, ou por um atentado, como aquele que ocorreu no começo deste século, quando explodiram as Torres Gêmeas de Nova York. Agora não se trata de conflitos raciais, nacionais ou motivados pelo petróleo. É algo bem maior, algo que nos confunde e nos sufoca. Esta crise nos afeta tanto ou mais já que nos enfrentamos ao ineditismo das problemáticas e onde a reação geralmente é a impotência total.

Quero inclusive confessar que há dias em que acordo e me pergunto: “Isto está acontecendo, mesmo?”. Olhamos pela janela e vemos as ruas vazias, um ambiente totalmente estranho, onde o silêncio parece ser ensurdecedor, tudo muito semelhante a um filme de terror, estamos fechados todos em casa, onde somos privados de nossa liberdade de ir e vir, com cenas tão incomuns que, se fossem três meses atrás, entrando numa lotérica ou agência bancária seríamos confundidos com assaltantes. Entretanto, hoje, quem não usa máscara é penalizado ou criticado por arriscar a vida dos outros.

Que será de nós, como pessoas, como humanidade?… Precisamos urgentemente de um novo projeto humano, de um projeto ecológico, de um projeto civilizatório, de uma ética, de uma política e uma antropologia que reconfigure o viver de uma forma mais inclusiva e mais fraterna. A canção Imagine adquire uma atualidade, antes inimaginável. E Pachamama agradece!

Os pulmões da Terra*

Necessitavam respirar.

As árvores deixaram de ser arrancadas.

As pessoas mais odiavam que amavam. Os pais precisavam passar mais tempo com os filhos… O rico pensava que podia comprar a felicidade. O jogador de futebol era mais popular que o cuidador da saúde.

O estresse fazia tremer as pessoas. E as raças levantaram grandes fronteiras…

Um dia, de repente, o mundo parou.

E então, a Terra começou a respirar ar puro.

E as águas voltaram novamente a cristalizar-se (ser incolor, inodora e insípida).

E os animais começaram a habitar em paz.

A Natureza é tão mágica que ela mesma começou a se limpar do mal que cometemos.

As pessoas à distância, perceberam que precisavam umas das outras, que se amavam.

E ficaram em casa, e leram livros, e ouviram mais e descansaram.

A família, de novo, estava unida.

O rico, ao não poder sair de casa, teve que se conformar com um pedaço de pão.

As pessoas aplaudiam das janelas os verdadeiros heróis.

Nossas mentes serenaram-se porque já não havia pressa.

E quando tudo estava a ponto de explodir, o mundo todo se uniu, convertendo os cinco continentes num só.

Tivemos medo, medo do desconhecido, medo da incerteza, medo da pandemia, da duração da pandemia, de me contagiar e a contagiar quem devo proteger, por nossos familiares, e mais ainda, pelos pequenos e pelos idosos, pelos amigos… em geral, medo.

E de repente, tudo para. E é quando entendemos o valor que têm as pequenas coisas, justo no momento em que as tiram de nós.

As coisas importantes, as quais antes não dávamos importância, começaram a adquirir outro matiz… E, assim, daremos a elas sua importância real.

O poder curativo dos abraços. O cheiro da família. O rir com os amigos por qualquer insignificância. O passear pela praia, sentindo a brisa do mar. E milhares de milhares de milhões de pequenos momentos que agora adquirem gigante importância. Estamos vivendo algo insólito, o ano em que a Terra, sozinha, obrigou o mundo a parar.

E o que veio para nos adoecer talvez um dia nos cure do verdadeiro mal que nos causamos.

Nós éramos ricos e ninguém sabia.

Ano: 2020…que lição e tanto está nos ensinando já nos seus primeiros meses!!!

NEGRO SAMBO – Cantante e poeta chileno

*Hugo Ramón Barbosa Oddone

Psicólogo (CRP 06-23702), paraguaio, mora em Bady Bassitt/SP.

Psicólogo pela UCA (Assunção) e USP (São Paulo).

Mestre e Doutorando em Educação e Saúde na Infância e Adolescência pela UNIFESP-Guarulhos/SP.

Trabalha em psicologia clínica com adultos, casais e família, em São José do Rio Preto – SP

Fone (17) 99703-7318

E-mail hugodone@gmail.com

Bibliografia

Consultas feitas no Dicionário Google sobre o termo Holismo.

SPANGENBERG, A. Gestalt-terapia: um caminho de volta para casa. Campinas: Editora Livro Pleno. 2007

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